Fillipe Azevedo Rodrigues
Professor
Doutor em Educação e Doutorando em Direito
Mestre em Constituição, Regulação e Desenvolvimento

O crime é fato social e, por isso, pressupõe agrupamento humano e alguma ordem jurídica de padronização de comportamento. A conduta desviante, a depender do grau de ofensividade atribuído pela ordem jurídica, converte-se em crime e atrai consequências sancionatórias para o responsável.

Nas organizações, microcosmos do conjunto social, os pressupostos do crime estão igualmente presentes, seja porque elas integram o dito conjunto seja porque, em seus limites particulares, impõem códigos de conduta ainda que informais, cujas práticas vedadas são desestimuladas pelo aparato sancionatório próprio.

No modelo hoje convencional de Estado de Direito, o Estado titulariza o jus puniendi e às organizações cabe reportar ilícitos de relevância penal e tomar as providências jurídicas necessárias para evitar, por via reflexa, que a conduta de um de seus membros (proprietário, diretores, funcionários etc.) repercuta na existência da própria estrutura.

Isso porque não é raro encontrar na regulação dos mais diversos setores econômicos sanções penais ou administrativas que possam determinar, inclusive, o encerramento das atividades da pessoa jurídica em decorrência de crime praticado por um de seus colaboradores. A esse respeito, cabe citar o teor do art. 24 da Lei Federal n.º 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que “dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente”:

Art. 24. A pessoa jurídica constituída ou utilizada, preponderantemente, com o fim de permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime definido nesta Lei terá decretada sua liquidação forçada, seu patrimônio será considerado instrumento do crime e como tal perdido em favor do Fundo Penitenciário Nacional.

Por esse e outros motivos, a adoção de políticas de governança e integridade no âmbito das organizações é determinante a fim de atenuar as consequências sancionatórias sobre a entidade em função de ações de um ou mais de seus membros. Veja que, conforme a legislação, o juízo de finalidade das pessoas jurídicas é subjetivo e caberá ao próprio Estado-Juiz exercê-lo, motivo pelo qual medidas preventivas como a criação de um compliance office e da difusão permanente da cultura anticorrupção são importantes para evitar a presunção pro societate que determine o encerramento dos negócios.

Para tanto, convém apresentar uma evolução da legislação internacional e nacional sobre as interseções entre a adoção de padrões de conformidade e o fenômeno criminal.

No dia 20 de dezembro de 1988, é realizada a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas em Viena, cujo art. 15, 2, a, ii, orientou que as entidades de transporte comercial de pessoas e mercadorias tomem “precauções razoáveis de impedir que seus meios de transporte sejam utilizados para cometer delitos”, notadamente mediante o “estímulo à integridade moral do pessoal”. Outro comando expresso da Convenção envolveu a incriminação das condutas de movimentação e ocultação de bens e valores provenientes do narcotráfico (art. 3, b).

A Lei Federal n.º 9.613, de 3 de março de 1998, disciplinou as medidas de prevenção e combate ao crime de lavagem de dinheiro na linha do compromisso firmado pelo Estado brasileiro por ocasião da Convenção de Viena (RODRIGUES e RODRIGUES, 2016). O legislador impôs às entidades listadas no art. 9º o dever de adotar “políticas, procedimentos e controles internos, compatíveis com seu porte e volume de operações, que lhes permitam atender” (art. 10), entre outras obrigações, o controle e a notificação de movimentações de bens e valores que representem “sérios indícios” de crimes (art. 11).

Com o fim de promover a centralização dessas informações repassadas sobretudo pelas instituições financeiras, a legislação pátria criou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). No âmbito internacional, a Financial Actions Task Force (Fatf) opera como entidade análoga, funcionando de observatório global da lavagem de dinheiro e do financiamento do terrorismo. Ambas as entidades ressaltam a importância de as organizações de direito público e privado colaborarem através de protocolos de integridade e controle interno com as autoridades locais e estrangeiras.

Em 31 de outubro de 2003, quase 15 anos após a Convenção de Viena, foi celebrada a Convenção das Nações Unidas contra Corrupção, conhecida como Convenção de Mérida, na qual houve uma atenção especial para a adoção pelos Estados membros dos princípios inerentes ao compliance em seus ordenamentos jurídicos:

i) Políticas e práticas de prevenção da corrupção – “Cada Estado Parte, de conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, formulará e aplicará ou manterá em vigor políticas coordenadas e eficazes contra a corrupção que promovam a participação da sociedade e reflitam os princípios do Estado de Direito, a devida gestão dos assuntos e bens públicos, a integridade, a transparência e a obrigação de render contas”. (Art. 5, 1);

(ii) Códigos de conduta para funcionários públicos – “Com o objetivo de combater a corrupção, cada Estado Parte, em conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, promoverá, entre outras coisas, a integridade, a honestidade e a responsabilidade entre seus funcionários públicos”. (Art. 8, 1);

(iii) Medidas relativas ao poder judiciário e ao ministério público – “Tendo presentes a independência do poder judiciário e seu papel decisivo na luta contra a corrupção, cada Estado Parte, em conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico e sem menosprezar a independência do poder judiciário, adotará medidas para reforçar a integridade e evitar toda oportunidade de corrupção entre os membros do poder judiciário. Tais medidas poderão incluir normas que regulem a conduta dos membros do poder judiciário”. (Art. 11, 1);

(iv) Setor privado – “Promover a formulação de normas e procedimentos com o objetivo de salvaguardar a integridade das entidades privadas pertinentes, incluídos códigos de conduta para o correto, honroso e devido exercício das atividades comerciais e de todas as profissões pertinentes e para a prevenção de conflitos de interesses, assim como para a promoção do uso de boas práticas comerciais entre as empresas e as relações contratuais das empresas com o Estado”. (Art. 12, 2, b).

Nesses moldes, a Lei Federal n.º 12.846, de 1.º de agosto de 2013, tratou da “responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira”. A Lei Anticorrupção brasileira estabeleceu, como critério para atenuar ou isentar a organização de punição, a “existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”.

Embora a Lei Anticorrupção não contenha matéria penal, é possível concluir que o sistema normativo anticorrupção, formado pela legislação penal – crimes contra a Administração Pública –, Convenção de Mérida e a própria Lei Federal n.º 12.846, de 2013, refletem na responsabilização individual dos dirigentes das pessoas jurídicas inquinadas por delitos dessa natureza.

Segundo Jorge de Figueiredo Dias e Susana Aires de Sousa (in FRANCO et al., 2013, p. 239), uma das hipóteses de responsabilidade criminal de gestores ocorre justamente quando houver fato criminoso em sua alçada de controle e tenha o dirigente se omitido no “dever de intervir e prevenir a eventual atuação criminosa”. O patrocínio de controles internos e a difusão da cultura de integridade, dentro de um grande e efetivo programa de compliance, exime o gestor da imputação de crime comissivo-omissivo, afinal cercou-se de todas as cautelas de boa governança alinhadas com as normativas locais e internacionais.

Ademais, a integração de estruturas de controle externo e interno das organizações, mediante a difusão do compliance criminal, implica em obstáculos eficientes no fluxo do crime transnacional: criminalidade transnacional > sistema financeiro > lavagem de dinheiro > organizações > sistema financeiro > criminalidade transnacional.

Por fim, a construção de uma política pública de compliance criminal eficiente demanda saberes interdisciplinares, cabendo destaque às teorias dos jogos, agência, captura[1] e domínio do fato. A prevenção é menos onerosa para todos os agentes envolvidos e, valendo-se de tais conceitos teóricos, a reatividade cede espaço para a cultura de conformidade, em que a persuasão exerce função de inibir o desvio dentro de uma estrutura sancionatória racional.[2]

REFERÊNCIAS

DIAS, Jorge de Figueiredo; SOUSA, Susana Aires de. “Manda quem pode, obedece quem deve”? Sobre o sentido e os limites da teoria do domínio do facto no contexto empresarial. In: FRANCO, Alberto Silva et al. Quase noventa anos: homenagem a Ranulfo de Melo Freire. São Paulo: Saraiva, 2013.

RODRIGUES, Fillipe Azevedo. Intervenção pública e proibição do insider trading: eficiência e ultima ratio na responsive regulation. In: Revista de Informação Legislativa, n.º 210, p. 211-238, Brasília, 2016. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle /id/522907>. Acesso em: 27 de dezembro de 2017.

RODRIGUES, Fillipe Azevedo; RODRIGUES, Liliana Bastos Pereira Santo de Azevedo. Lavagem de dinheiro e crime organizado: um diálogo entre Brasil e Portugal. Belo Horizonte: Del Rey, 2016.

SANTOS, Natália Batista da Costa; RODRIGUES, Fillipe Azevedo. Os jogos da leniência: uma análise econômica da Lei Anticorrupção. In: Revista Direito Público, v. 14, n.º 78, 2017, p. 54-71, nov-dez, 2017.

Texto atualizado em: 22/06/2020.


[1] Uma aplicação das teorias dos jogos, agência e captura pode ser conhecida no artigo Os jogos da leniência: uma análise econômica da Lei Anticorrupção (SANTOS e RODRIGUES, 2017).

[2] Para saber mais sobre a estrutura de escalonamento de sanções (the eforcement pyramid), consultar o artigo Intervenção pública e proibição do insider trading : eficiência e ultima ratio na responsive regulation (RODRIGUES, 2016).

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Liliana Santo

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